terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Game Overdose [004]



Eu sorri. Mesmo que sem intenção, eu sorri. Um sorriso discreto, o suficiente para que a fumaça do cigarro se espalhasse pelo ar, eu sorri. Nenhum som foi emitido. Lembro que, nas raríssimas vezes em que gargalhei, estranhei tanto quanto quem ouviu, como se aquilo não fosse meu. Mas era um riso singelo, talvez sincero, nunca dá pra ter certeza. Também sutil, desconcertante, lascivo, enigmático e debochado, acima de tudo. Por vezes até ingênuo, fazendo jus às outras inúmeras controvérsias que caracterizavam o portador. Havia algo de muito errado nele, havia algo de muito errado em mim.


E era essa a minha graça, olhar pro espelho e dar risada, ao ver quem me tornei. E mesmo que tudo parecesse ser nada, meu peito ainda queimava, por lá no fundo saber que ainda não havia perdido o brilho, lá no fundo do olhar.

Depois sentei na cadeira e abri minha cerveja. Daí pensei nas vezes em que repeti pronomes possessivos e em outras que chorei. Então achei graça, da minha própria desgraça e logo sorri. Um gole ou dois e repeti, já era quase um ritual. Um bem satânico, daqueles. Toda essa introspecção ocorria numa casa invadida. Perdão, emprestada por alguns dias. Foi onde eu havia crescido. O dono era o meu irmão.

O vento que bateu na janela junto a chuva fazia cenario a essa piada, e foi então que me lembrei. De todos os xingamentos lançados por belas garotas no fundo do corredor, dos porres que já tomei, dos poucos amigos que um dia perdi, e do inferno que eu mesmo criei.

De uns meses pra cá, dadas as circunstâncias, mudei de profissão. De início supus que radicalmente, mas não foi bem assim, já que todos os meios contribuíram para este fim. Agora estava mais como uma extensão da ocupação anterior. Uma que propunha soluções definitivas pra aquilo que eu já costumava combater todo santo dia, com folgas alteráveis, contra cheque adulterável e salário desmotivador. Naquela ocupação, tudo era justamente o contrário da minha situação atual: Soluções temporárias para problemas definitivos. No dia que inventei de contribuir com a cegueira da justiça fui afastado do cargo. No currículo, os dizeres "justa" causa, abuso de autoridade e conduta inapropriada. Ex militar, desempregado e prestes a sumir com meu antigo advogado. Virei matador de aluguel.

E este era o meu inferno particular: Estava condenado a lidar com os meus demônios, que insistiam em me fazer lembrar de todas as coisas que já havia feito. Isso me tornava um deles, quem sabe até pior. O lago de fogo e enxofre que ouvi tantas vezes minha avó repetir entre a ida até a igrejinha da esquina e a volta pra casa não eram nada mais nada menos que isso. O inferno é a crise de consciência. E ela queima, por dentro. O inferno pra mim seria mais como um estado agonizante de espírito do que necessariamente um lugar. Aprendi na prática que o maior tormento é o espiritual e a maior tortura é a psicológica. As vozes continuavam e os flashes não paravam. A cerveja não era água benta, mas ajudava a esvaziar a oficina do diabo.

Eu estava tão certo do fim, por já estar vivendo nele. Mas ainda costumava criar expectativas e nutrir esperanças, dando tudo do bom e do melhor para os demônios parasitas que corroíam minhas entranhas. O que mais poderia dar errado?

Peguei um papel amassado no bolso e a caneta na gaveta, pois aquelas palavras jamais poderiam ser desfeitas. Era uma nota fiscal de supermercado, onde comprei algo pra aliviar os meus sintomas de lucidez. Lá deixei claro que, por mais que um dia, tudo possa ter parecido tão sem graça, eu jamais voltaria atrás, ainda que pudesse, como nas palavras que ali escrevi.


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