terça-feira, 24 de maio de 2016

Game Overdose [008]


Bati na porta. Um sujeito alto, magro e meio desajeitado abriu. Esboçou um sorriso, em seguida pareceu, num gesto sutil até, fazer menção de me revistar. Mas a julgar pela minha expressão em vista disso, suponho que tenha reconsiderado. Optou por aliviar a tensão inicial com um polido boa noite, devidamente retribuído, onde em seguida fui inquirido se ele poderia ajudar. Até que fui com a cara dele, razão pra qualquer um se vangloriar. Embora creia piamente que ele não iria gostar nada do que encontraria na minha cintura, discretamente acobertada pela camisa e sendo parte de minha vida obscura. Respondi:


 Vim buscar uma pessoa.


 Pois não, amigo. Fique à vontade.


 Agradecido, com licença.


 O banheiro fica à esquerda e tem cerveja no balcão.  Confirmei com a cabeça, e captei a mensagem. Presumi que ele fosse de fato o anfitrião. Prossegui dando alguns passos no assoalho encarpetado e fazendo uma varredura inicial no local. Poucas rotas de fuga, uma pena. Algo me dizia que mais cedo ou mais tarde alguma  merda aconteceria. Minha intuição conseguia ser bem precisa nessas situações.

Encontrei-a no balcão, com meia taça de Martini e meia dúzia de panacas em volta. Todos eles disputando entre si para tê-la a tiracolo. Elevavam as vozes, gesticulando agressivamente. Iam atacando os demais ali presentes na tentativa de rebaixá-los enquanto continuavam exaltando as suas supostas qualidades, onde discrição definitivamente não era a de nenhum deles. Bem, eu já sabia que a conversa fiada em vigor jamais funcionaria com ela, coisa que os imbecis em questão não notariam nem mesmo a meio metro de distancia. Isso porque estavam ocupados demais falando alto e fazendo micagens de circo. Em apenas dois minutos observando consegui me manter a par de todas essas coisas. Nem daria pra sentir ciúmes daquilo.

Andei mais um pouco em direção à patética discussão sobre esportes que ocorria ali, onde Mirela visivelmente se consumia em tédio e ansiedade. Me viu, se levantou e veio em minha direção. Ela estava mais uma vez um espetáculo, pra variar. Os indivíduos no balcão sequer tiveram o mínimo de decência e ínfima consideração de disfarçar o olhar fixo para sua silhueta enquanto ela dava as costas e caminhava. Eu, em contrapartida, lancei o meu sobre eles. Pareceu funcionar na intenção de intimidar.


 Por que demorou tanto?


 É que estava assistindo a uma peça teatral.


 Você? Duvido. Que peça?


 Nada, deixa pra lá.


 Ah, saquei.  Breve pausa.  Você é um idiota.


 Eu sei. Mas você gosta. — Realmente, que coisa idiota de se dizer.

Enquanto íamos em direção à porta, um dos rapazes a chamou. Era o que ela temia e o que eu a essa altura já torcia pra acontecer. Me virei e então de imediato ela me abraçou. Adivinha o que encontrou? Pois é. Sempre fiquei meio hipnotizado com aqueles olhos castanhos arregalados misturados com uma expressão de surpresa seguida de forçosa discrição diante da então embaraçosa situação a partir dali.


 Henrique, por favor...


 É sério que você ainda disse seu nome?


— Não. Foi cortesia da Laís, outra idiota. Ela fez o favor de me chamar na frente deles.


— O porta-voz do grupinho prosseguiu:


— Desculpem interromper o momento do casal, mas a moça não terminou a bebida. Seria muito indelicado levá-la da festa antes disso, amigo.


 Mais indelicado ainda seria insistir sendo evidente o fato de que ela prefere vir comigo a continuar aqui. Tenha uma boa noite.  Retruquei. Quando me virei, o anfitrião estava bem atrás de nós:


 Algum problema aqui, pessoal?


 Já estamos de saída.  Mirela tentando apaziguar.


 Cuidado com os degraus!  Um outro panaca do grupo falou.


 Se importaria de nos mostrar o caminho?  Eu sei, não de pra resistir àquilo.


— Resolvam lá fora, por favor.  Palavras do nosso bom anfitrião. Foi até engraçado, lembro que nesse momento a música parou.


 Considere feito. Mais uma vez agradeço.  Eu disse.


Depois que saímos, todo mundo nos seguiu. Os seis sujeitos, obviamente, e a platéia, o pessoal da festa. Fizeram uma roda em torno da pista. Ao centro, eu e Mirela. Um deles se apresentou dando um passo à frente. Veio da mesma direção de onde se situavam os outros cinco. Ele tirou a camisa e se preaquecia, ou seja lá o que significasse aquilo. Olhei em volta na esperança de encontrar um mínimo de noção do ridículo.


 Segura pra mim?  Pedi a ela. Tirei minha semi-automática da cintura. Ela atendeu o pedido, me olhando espantada. Não apenas ela, mas todos ali presentes. Olhei bem pro meu oponente, se é que dava pra chamá-lo assim. Perguntei:

 Hm, então quer ser o primeiro. Pretende mesmo prosseguir?


 Eu tô aqui na sua frente, não? Vamos la, quero ver do que você é feito.


 Ok. Vamos acabar logo com isso.

quinta-feira, 5 de maio de 2016

Game Overdose [007]


 Onde você está?

 Não muito longe. Aconteceu algo?

 Preciso de um favor.

 Tô indo praí.

 Espera, primeiro me deixa explicar. Não tô em casa.

 Vá em frente. Vou escutando no caminho.

 É que vim pra uma social e estou me sentindo péssima aqui. Minha carona foi lá pra cima com um cara meio estranho e agora eu tenho que ficar dispensando babacas de cinco em cinco minutos. Posso te esperar então?

 Tô indo praí.

Mirela no telefone. Quando desliguei, já estava na porta do vizinho pedindo as chaves do carro emprestado. Um Voyage 98, pertencente ao Senhor João Carlos Sá Cavalcante, mentor e amigo de longa data do meu pai. Veterano da FEB, serviu ao país como Pracinha na II Guerra. Hoje com seus oitenta e nove anos, conserva poucos dentes e lucidez. Em compensação, muita sabedoria e teimosia. Me viu crescer, era quase como um avô. Ele cedeu o favor me desejando feliz natal. O abracei e desci, dessa vez pelo elevador. O porteiro sequer notou que saí sem nunca ter passado pelo saguão do prédio. Fui até a garagem, entrei no carro, chequei o endereço que ela enviou, sorri e saí.

Minha relação com ela era algo que merecia um estudo científico bem aprofundado. Muito além daquela explicação caixinha de cereal sobre os índices elevados dos neurotransmissores responsáveis por todo o calor, euforia, pensamento obsessivo e todas essas porcarias que sentimos quando nos apaixonamos e que ignoramos completamente assim que nos encontrarmos nessa mesma situação. Substâncias como a dopamina, norepinefrina, serotonina e mais adiante a oxitocina, nos indicando precisamente a direção do precipício, e o quanto dali por diante estaríamos fodidos. Nós não entendíamos, mas lá no fundo sabíamos. De início até tentávamos nos convencer do contrário, mas era tarde demais, já havíamos pulado. Era uma história bonita, qualquer dia desses te conto um pedaço.

Por falar em histórias bonitas, e voltando ao bom vizinho e amigo da família em nosso antigo apartamento na Vila Formosa, me vi comparando-o e chegando a conclusão de que ele era exatamente o oposto do meu outro vizinho, no prédio em que morávamos juntos, a Srta. Encrenca e eu. Aquele lá do apartamento de baixo e recentemente desocupado, o fofoqueiro ranzinza. Isso quando eu ainda não estava fugindo nem da polícia, nem do contratante, e muito menos dos seguranças de meu mais recente alvo em questão. Ou seja, umas três semanas atrás.

Ambos os vizinhos eram idosos, e viviam sozinhos. Mas o que me surpreendia era a diferença no modo como cada um levava o que ainda restava de vida. Cheguei a conhecer a esposa do Seu João, uma pessoa encantadora. Atenciosa, dedicada e acima de tudo, caridosa. O câncer a venceu há dois anos atrás. Quando parava pra pensar em um casal que utilizaria como referência SE um dia resolvesse me casar e SE precisasse de um referencial, o deles seria o escolhido para representar aquilo que eu gostaria de ter pra mim.

Meus pais não serviriam como exemplo, pelo menos não pra isso. Mas não que em algum momento houvessem deixado de tentar nos passar uma boa imagem de sua relação ou se esforçado para criar a mim e meu irmão da melhor maneira possível. Apenas era contraditório, o que eu não conseguia assimilar. Muito embora eles tivessem entre si uma conexão tão intensa a ponto de fazerem o relacionamento perdurar por longos anos, suportando intempéries como discussões intermináveis e casos de traição. Não estavam juntos apenas por nossa causa, muito menos como que por obrigação. Eles realmente se completavam, por mais que os pilares da relação já estivessem tão comprometidos quanto aquilo que os dois perpetuavam. Afinal, que tipo relacionamento estaria imune à discussão?

Contudo, Seu João e Dona Lúcia iam além. Ainda me lembro do jantar de comemoração dos seus cinquenta e tantos anos de casados, onde eu coincidentemente havia tirado licença nesse dia. Um casal de velhinhos que se alfinetavam o tempo inteiro, soltando farpas um pro outro como se fossem beijos durante os ajustes na decoração e no preparo dos alimentos. Era até engraçado, mas também incrível. Não que eles fossem um casal perfeito, mas acaso um dia você visse, não acreditaria muito nisso. Depois de tantos anos de convivência, creio que eles finalmente tenham aprendido. Talvez os meus pais chegariam lá, caso ambos já não houvessem morrido. Talvez um dia eu chegue lá, se ela ainda me quiser ou caso nenhum deles consiga me matar. 

No celular, a mensagem:

 Cheguei.

 Espera, tô saindo.


 Me espera você. Tô entrando aí.