segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Game Overdose [0010/2]






Acordei novamente. Dessa vez foi pra valer. Havia sonhado dentro de um sonho. Qual a probabilidade disso ocorrer?


Geralmente, eu não sonhava com nada. E se sonhava, definitivamente não me lembrava. Mas quando finalmente sonhava, e fielmente lembrava, veja só o que ocorria: Sonhos envolvendo risadas lúgrubes regadas a corpos ensanguentados por conta dos supostos golpes de faca.

Nessas ocasiões, preferia não arriscar na tentativa de diferenciar entre pesadelo e sonho, já que a realidade era, de fato, o que mais me assustava. Quem, afinal, poderia garantir se a vida a qual estamos tão acostumados no fim não passa de um sonho? Talvez acordar seja o pesadelo. E continuamos nos enganando.

Fiz menção de levantar, quando ela montou em mim. — Surpresa! — Ela disse. — Olha só o que montei pra você. — Era a minha Taurus 380, que ela agitava no ar feito caubói dos anos 60, enquanto eu só conseguia pensar no trocadilho sobre a montaria.


— Há quanto tempo você estava aí me olhando?

— Uns cinco minutos, no máximo. Você se debatia na cama e chamava por mim. Parecia tão bom que resolvi não atrapalhar.

— Ah, sem dúvidas. Também suponho que fui até o jardim, colhi umas flores e voltei pra cá, não?

— Isso! Aquele seu velho problema com sonambulismo. Mas até que foi bonitinho.

...
(Olhar de desdém)


— Tá, a parte de chamar meu nome foi exagero. Mas a do jardim você pode ter certeza.

— Agora sim acredito, até sonhei com isso. Inclusive farei questão de ver as flores. Logo depois que terminarmos o faroeste aqui.

— Primeiro você vai ter que me prometer não dormir.

— Te garanto que até se fosse mesmo sonâmbulo eu daria conta, boneca.— Por pouco não cuspi no chão. Mas, pra não perder a piada de todo e ainda manter o fetiche, só acendi um cigarro e sorri.


Ela apontou a arma pra mim.



Click.








domingo, 3 de julho de 2016

Game Overdose [0010/1]


Acordei às três e tantas da madrugada. Isso vinha ocorrendo com frequência nas últimas semanas. A ciência afirma que é um fenômeno comum em pessoas que sofrem crises de estresse e ansiedade. Alguns dizem que este é o horário em que os demônios estão nos assistindo dormir. Em todo o caso, nenhuma das duas hipóteses me surpreenderiam. 


O horário místico das três da madrugada carrega consigo talvez não apenas entidades, mas também com toda certeza incontáveis especulações concernentes à sua causa, como tão somente já foram em inúmeras ocasiões discorridas por aí. Razões estas que estão, em sua grande maioria, ligadas ao ocultismo histórico, numerologia cabalística e consultoria tarológica. Eu, como todo bom cético beirando ao niilismo, acho tudo isso uma tremenda bobagem, embora não possa, em contrapartida, de maneira alguma negar o meu fascínio, o que justifica a pesquisa.


Especula-se que este simbólico horário escolhido pelo mal absoluto nada mais é que uma zombaria ao Cristianismo, como sendo o momento precisamente inverso ao da morte de Cristo, onde o mesmo entregou, segundo a bíblia, nas mãos do Pai o seu espírito. Ou seja, entre às três e quatro da tarde, conforme acredita-se que teria de fato ocorrido. Outros ainda, afirmam que o horário está ligado ao número 15, a carta de tarô intitulada de "O Diabo", uma menção sutil às quinze horas, ou seja, três, a contar o dia com as respectivas vinte e quatro. Como também outra comparação, porventura mais zombeteira ainda, à Santíssima Trindade. Ou, ainda em tempo, uma alusão ao significativo múltiplo do que vem a ser o número da besta, 666. Para os devotos, com especial ênfase aos fanáticos religiosos, sempre será possível estabelecer uma conexão, entre os números diversos e demais adventos da sua professa crença, como indícios e sinais que corroboram tais afirmações.


O fato é que, eu realmente havia acordado mais uma vez às três da madrugada, e não havia nenhum demônio velando meu sono ou qualquer outro sinal de visitas. Uma pena, já que me levantei assustado, e com vontade de conversar. Talvez os demônios tivessem aparecido mais cedo, afinal estávamos no horário de verão. Ou talvez tivessem me abandonado, quem sabe. Talvez eu fosse meu próprio demônio.


Ela estava ali do lado, envolta em toda a sua costumeira serenidade angelical. Pensei em acordá-la até, mas o que eu diria? Não foi um pesadelo. Era pior ainda. Talvez fosse um sinal. Desejei, por um breve momento, ter um espelho ou quem sabe uma ouija, mas logo deixei de lado a idiotice. Fechei novamente os olhos, na tentativa de dormir.


Acordei com o barulho da fechadura girando. Havia adormecido no sofá velho da casa onde havia passado boa parte de minha infância. Cada pedaço daquele lugar continha grandes histórias de quando ainda éramos ingênuos, a ponto de acreditar nos heróis das revistas em quadrinhos, monstros debaixo da cama, velhotes nas chaminés e outros tantos mitos e lendas urbanas. Um mundo de fantasia cheio de mistérios, onde mergulhávamos bem fundo. Tínhamos medo, é verdade, mas éramos movidos pela curiosidade. Haviam muitos perigos nesse mundo, mas ainda assim era perfeito, um refúgio. Penso que os perigos de lá no fundo não fossem tão nocivos quanto a realidade que nos consumia do lado de cá.


Antes que pudesse me recompor, vi que o sofá estava sujo de sangue. Já era dia, e uma pontada de dor na costela esquerda me afligia. Havia sido esfaqueado, só não entendia como isso poderia ter ocorrido de maneira tão imperceptível ao sono e como a dor também se manteve tão alheia a isso. Meu primeiro palpite foi o de que havia sido drogado, o que explicaria a tontura seguida de enjôo. O segundo pensamento foi: Quem seria capaz de fazer isso comigo?


Vomitei. Sangue. Tentei gritar pedindo socorro. Estava sem voz. Procurei o celular. Disquei 911. Ouvi risadas lá atrás. Femininas. Depois a vista escureceu.


Não me lembrava de mais nada.


domingo, 12 de junho de 2016

Game Overdose [009]


Pedi a Mirela que se afastasse do centro da roda. Meio relutante ela foi, segurando minhas chaves e a pistola. Me incumbi de estudar os movimentos do sujeito. Era jovem, talvez na faixa dos vinte e dois. Rápido até, mas muito afoito. Veio pra cima, e deu uns dois socos a esmo no ar. Asma. Só descobri depois de tê-lo acertado no estômago assim que desviei dos golpes.

Ele ficou ali no chão, tentando se recuperar enquanto dois de seus supostos amigos o arrastavam na mesma intenção: Fazê-lo se levantar o mais rápido possível. Os outros três vieram pra cima, todos de uma vez. Gesto claro de covardia, visto que eu era apenas um. Pois bem, seus filhos da puta. Podem vir.

Enquanto me encarregava do primeiro, o segundo me acertou, leve descuido meu. Nas costelas, ainda por cima. Teve volta.

O segredo quando se está em desvantagem é entreter os oponentes a tempo de prever os seus próximos ataques e formular os nossos próprios. Eu já imaginava que viriam mais de um ao mesmo tempo. O que eu de fato não esperava seria ela apontando a semi-automática pra mim logo depois que acertei um cruzado no segundo, e já ia em direção ao terceiro. O que diabos deu naquela mulher?

 Abaixa essa merda.  Eu disse.

 Já chega dessa palhaçada. Não quero ser motivo de briga pra seu ninguém.  E todos nós lá, sem reação alguma. Olhando paralisados para aquelas mãos trêmulas empunhando a arma.

 Então pelo menos aponte pra algum desses imbecis. O que houve com sua mira? — Falei, apontando pra eles.

Pra quê eu fui falar aquilo. Ela destravou a pistola e disparou. O tiro acertou o chão e daí ela deixou cair, enquanto toda a multidão corria. Ela ficou extremamente assustada, compreensível até. Comecei a rir.

 Vem, sua maluca. Vamos sair logo daqui.

No caminho, fomos lembrando o dia em que ensinei-a a atirar. Já em casa, ela insistiu em checar se havia algum ferimento grave.  Não foi nada.  Eu disse. Não adiantou muito, ela era a personificação da teimosia.

 Uma ova que não foi. Senta aí.  Eu havia aberto a boca já na intenção de objetar quando ouvimos a campainha. Olhei pro relógio, duas e quinze da matina. Quem seria?

 Eu não acredito!  Sussurrou.  É a polícia!

Ela espiou pelo olho mágico da porta. Nem tive o trabalho de me esconder. Era óbvio que eles já sabiam que eu estava lá. Provavelmente ficaram de tocaia próximos da porta e na certa me viram entrar com ela. Fui até lá atender.

 Boa noite, pessoal. Em que posso ser útil?

 Pode começar me contando que porra está acontecendo, Henrique.  Uma voz familiar saiu detrás da dupla. Assim que o reconheci, não tive escolha. Tive que convidá-los pra entrar.

Moraes havia sido meu parceiro por quatro dos sete anos em que estive na corporação. Era um bom homem. Pacífico na maioria das vezes, diplomático enquanto pudesse, e de caráter e índole inquestionáveis. Casado, pai de três filhos, viciado em café e diabético. E agora investigador. Um amigo. Contei-lhe tudo.

 Caralho! Você jogou os dardos na cruz, não é mesmo?  Ele disse. Havia aprendido essa expressão comigo. Ultimamente tenho trocado os dardos pelo verbo metralhar. Pobre Cristo? Pobre de mim, isso sim. Ele continuou:

 Então, os rapazes aqui foram incumbidos de ficar no quarteirão em seu encalço. Eles darão cobertura, pode confiar. É o máximo que posso fazer por você. Dê um jeito de limpar essa bagunça. E a da casa também.  Ele me entregou um envelope. Uma espécie de dossiê. Parecia que estava me contratando pra um novo serviço.

 Agora vamos indo. Meu plantão acabou a algumas horas e tenho gente me esperando. Parece que vocês têm mais o que fazer. Pelo visto você está perdendo o jeito, hein!

 Eram três moleques de uma só vez. Mal educados. Saíram vivos e nem me agradeceram. Por falar nisso, obrigado, por tudo. Mesmo.

— Não por isso, estamos quase quites. Se despeça da Mira por mim.


Levei-os até a saída. Quando voltei, olhei pra dentro do quarto. Mirela se trocava. 

De repente, ela parou. 

Daí olhou pra mim. 

E nem precisou chamar.

terça-feira, 24 de maio de 2016

Game Overdose [008]


Bati na porta. Um sujeito alto, magro e meio desajeitado abriu. Esboçou um sorriso, em seguida pareceu, num gesto sutil até, fazer menção de me revistar. Mas a julgar pela minha expressão em vista disso, suponho que tenha reconsiderado. Optou por aliviar a tensão inicial com um polido boa noite, devidamente retribuído, onde em seguida fui inquirido se ele poderia ajudar. Até que fui com a cara dele, razão pra qualquer um se vangloriar. Embora creia piamente que ele não iria gostar nada do que encontraria na minha cintura, discretamente acobertada pela camisa e sendo parte de minha vida obscura. Respondi:


 Vim buscar uma pessoa.


 Pois não, amigo. Fique à vontade.


 Agradecido, com licença.


 O banheiro fica à esquerda e tem cerveja no balcão.  Confirmei com a cabeça, e captei a mensagem. Presumi que ele fosse de fato o anfitrião. Prossegui dando alguns passos no assoalho encarpetado e fazendo uma varredura inicial no local. Poucas rotas de fuga, uma pena. Algo me dizia que mais cedo ou mais tarde alguma  merda aconteceria. Minha intuição conseguia ser bem precisa nessas situações.

Encontrei-a no balcão, com meia taça de Martini e meia dúzia de panacas em volta. Todos eles disputando entre si para tê-la a tiracolo. Elevavam as vozes, gesticulando agressivamente. Iam atacando os demais ali presentes na tentativa de rebaixá-los enquanto continuavam exaltando as suas supostas qualidades, onde discrição definitivamente não era a de nenhum deles. Bem, eu já sabia que a conversa fiada em vigor jamais funcionaria com ela, coisa que os imbecis em questão não notariam nem mesmo a meio metro de distancia. Isso porque estavam ocupados demais falando alto e fazendo micagens de circo. Em apenas dois minutos observando consegui me manter a par de todas essas coisas. Nem daria pra sentir ciúmes daquilo.

Andei mais um pouco em direção à patética discussão sobre esportes que ocorria ali, onde Mirela visivelmente se consumia em tédio e ansiedade. Me viu, se levantou e veio em minha direção. Ela estava mais uma vez um espetáculo, pra variar. Os indivíduos no balcão sequer tiveram o mínimo de decência e ínfima consideração de disfarçar o olhar fixo para sua silhueta enquanto ela dava as costas e caminhava. Eu, em contrapartida, lancei o meu sobre eles. Pareceu funcionar na intenção de intimidar.


 Por que demorou tanto?


 É que estava assistindo a uma peça teatral.


 Você? Duvido. Que peça?


 Nada, deixa pra lá.


 Ah, saquei.  Breve pausa.  Você é um idiota.


 Eu sei. Mas você gosta. — Realmente, que coisa idiota de se dizer.

Enquanto íamos em direção à porta, um dos rapazes a chamou. Era o que ela temia e o que eu a essa altura já torcia pra acontecer. Me virei e então de imediato ela me abraçou. Adivinha o que encontrou? Pois é. Sempre fiquei meio hipnotizado com aqueles olhos castanhos arregalados misturados com uma expressão de surpresa seguida de forçosa discrição diante da então embaraçosa situação a partir dali.


 Henrique, por favor...


 É sério que você ainda disse seu nome?


— Não. Foi cortesia da Laís, outra idiota. Ela fez o favor de me chamar na frente deles.


— O porta-voz do grupinho prosseguiu:


— Desculpem interromper o momento do casal, mas a moça não terminou a bebida. Seria muito indelicado levá-la da festa antes disso, amigo.


 Mais indelicado ainda seria insistir sendo evidente o fato de que ela prefere vir comigo a continuar aqui. Tenha uma boa noite.  Retruquei. Quando me virei, o anfitrião estava bem atrás de nós:


 Algum problema aqui, pessoal?


 Já estamos de saída.  Mirela tentando apaziguar.


 Cuidado com os degraus!  Um outro panaca do grupo falou.


 Se importaria de nos mostrar o caminho?  Eu sei, não de pra resistir àquilo.


— Resolvam lá fora, por favor.  Palavras do nosso bom anfitrião. Foi até engraçado, lembro que nesse momento a música parou.


 Considere feito. Mais uma vez agradeço.  Eu disse.


Depois que saímos, todo mundo nos seguiu. Os seis sujeitos, obviamente, e a platéia, o pessoal da festa. Fizeram uma roda em torno da pista. Ao centro, eu e Mirela. Um deles se apresentou dando um passo à frente. Veio da mesma direção de onde se situavam os outros cinco. Ele tirou a camisa e se preaquecia, ou seja lá o que significasse aquilo. Olhei em volta na esperança de encontrar um mínimo de noção do ridículo.


 Segura pra mim?  Pedi a ela. Tirei minha semi-automática da cintura. Ela atendeu o pedido, me olhando espantada. Não apenas ela, mas todos ali presentes. Olhei bem pro meu oponente, se é que dava pra chamá-lo assim. Perguntei:

 Hm, então quer ser o primeiro. Pretende mesmo prosseguir?


 Eu tô aqui na sua frente, não? Vamos la, quero ver do que você é feito.


 Ok. Vamos acabar logo com isso.

quinta-feira, 5 de maio de 2016

Game Overdose [007]


 Onde você está?

 Não muito longe. Aconteceu algo?

 Preciso de um favor.

 Tô indo praí.

 Espera, primeiro me deixa explicar. Não tô em casa.

 Vá em frente. Vou escutando no caminho.

 É que vim pra uma social e estou me sentindo péssima aqui. Minha carona foi lá pra cima com um cara meio estranho e agora eu tenho que ficar dispensando babacas de cinco em cinco minutos. Posso te esperar então?

 Tô indo praí.

Mirela no telefone. Quando desliguei, já estava na porta do vizinho pedindo as chaves do carro emprestado. Um Voyage 98, pertencente ao Senhor João Carlos Sá Cavalcante, mentor e amigo de longa data do meu pai. Veterano da FEB, serviu ao país como Pracinha na II Guerra. Hoje com seus oitenta e nove anos, conserva poucos dentes e lucidez. Em compensação, muita sabedoria e teimosia. Me viu crescer, era quase como um avô. Ele cedeu o favor me desejando feliz natal. O abracei e desci, dessa vez pelo elevador. O porteiro sequer notou que saí sem nunca ter passado pelo saguão do prédio. Fui até a garagem, entrei no carro, chequei o endereço que ela enviou, sorri e saí.

Minha relação com ela era algo que merecia um estudo científico bem aprofundado. Muito além daquela explicação caixinha de cereal sobre os índices elevados dos neurotransmissores responsáveis por todo o calor, euforia, pensamento obsessivo e todas essas porcarias que sentimos quando nos apaixonamos e que ignoramos completamente assim que nos encontrarmos nessa mesma situação. Substâncias como a dopamina, norepinefrina, serotonina e mais adiante a oxitocina, nos indicando precisamente a direção do precipício, e o quanto dali por diante estaríamos fodidos. Nós não entendíamos, mas lá no fundo sabíamos. De início até tentávamos nos convencer do contrário, mas era tarde demais, já havíamos pulado. Era uma história bonita, qualquer dia desses te conto um pedaço.

Por falar em histórias bonitas, e voltando ao bom vizinho e amigo da família em nosso antigo apartamento na Vila Formosa, me vi comparando-o e chegando a conclusão de que ele era exatamente o oposto do meu outro vizinho, no prédio em que morávamos juntos, a Srta. Encrenca e eu. Aquele lá do apartamento de baixo e recentemente desocupado, o fofoqueiro ranzinza. Isso quando eu ainda não estava fugindo nem da polícia, nem do contratante, e muito menos dos seguranças de meu mais recente alvo em questão. Ou seja, umas três semanas atrás.

Ambos os vizinhos eram idosos, e viviam sozinhos. Mas o que me surpreendia era a diferença no modo como cada um levava o que ainda restava de vida. Cheguei a conhecer a esposa do Seu João, uma pessoa encantadora. Atenciosa, dedicada e acima de tudo, caridosa. O câncer a venceu há dois anos atrás. Quando parava pra pensar em um casal que utilizaria como referência SE um dia resolvesse me casar e SE precisasse de um referencial, o deles seria o escolhido para representar aquilo que eu gostaria de ter pra mim.

Meus pais não serviriam como exemplo, pelo menos não pra isso. Mas não que em algum momento houvessem deixado de tentar nos passar uma boa imagem de sua relação ou se esforçado para criar a mim e meu irmão da melhor maneira possível. Apenas era contraditório, o que eu não conseguia assimilar. Muito embora eles tivessem entre si uma conexão tão intensa a ponto de fazerem o relacionamento perdurar por longos anos, suportando intempéries como discussões intermináveis e casos de traição. Não estavam juntos apenas por nossa causa, muito menos como que por obrigação. Eles realmente se completavam, por mais que os pilares da relação já estivessem tão comprometidos quanto aquilo que os dois perpetuavam. Afinal, que tipo relacionamento estaria imune à discussão?

Contudo, Seu João e Dona Lúcia iam além. Ainda me lembro do jantar de comemoração dos seus cinquenta e tantos anos de casados, onde eu coincidentemente havia tirado licença nesse dia. Um casal de velhinhos que se alfinetavam o tempo inteiro, soltando farpas um pro outro como se fossem beijos durante os ajustes na decoração e no preparo dos alimentos. Era até engraçado, mas também incrível. Não que eles fossem um casal perfeito, mas acaso um dia você visse, não acreditaria muito nisso. Depois de tantos anos de convivência, creio que eles finalmente tenham aprendido. Talvez os meus pais chegariam lá, caso ambos já não houvessem morrido. Talvez um dia eu chegue lá, se ela ainda me quiser ou caso nenhum deles consiga me matar. 

No celular, a mensagem:

 Cheguei.

 Espera, tô saindo.


 Me espera você. Tô entrando aí.


terça-feira, 22 de março de 2016

Game Overdose [006]

Da primeira vez que aconteceu foi...Complicado. Uma ótima palavra a ser empregada quando não conseguimos expressar a gravidade da situação ou não fazemos a mínima noção dela. Talvez até consigamos, mas preferimos não falar sobre. Qualquer coisa que dissermos pode reavivar a dor e alimentar o imaginário do inquiridor. Eles nunca entenderiam, porque não estavam lá, não passaram por metade do que passamos e nem fizeram metade que tivemos que fazer. Foi tudo muito rápido, é o que costumamos dizer. Para nossa família, nossos amigos, a quem possa interessar e autoridades competentes. Não deixa de ser verdade, mas também serve pra que evitem pedir detalhes.

Depois do ocorrido, nunca mais fui o mesmo.


Havia muita gente no local, muitas vítimas em potencial. Essa era, dentre todas, minha maior preocupação. Não conseguiria visualizar qualquer inocente como sendo apenas uma perda aceitável, se é que me entende. Embora mensurar quem seja de fato inocente e diferenciá-los dos culpados seja uma tarefa tão árdua quanto era o meu trabalho.


Nem sempre tive o cuidado de estudar bem a proposta antes e buscar saber dos motivos por trás de tudo. Até porque era praticamente impossível de se ir a fundo nos registros e ultrapassar uma ordem direta do alto comando da polícia militar. E, vai por mim: O contratante sempre escondia algo, mesmo sendo ele pessoa física ou instituição. De início, meus critérios avaliativos para aceitação do serviço consistiam apenas na grana. Dependendo do que eu encontrasse, isso tornaria o contratante mais culpado que o próprio alvo.


Da primeira vez que aconteceu eu apenas cumpria meu dever obedecendo ordens. E o sistema, por sua vez, as comprava de mim. No fim das contas, entre comprar, cumprir e dever, o resultado que obtive foi o de que, o direito de escolha é uma ilusão. Isso mesmo, talvez você nunca teve ou fez alguma real escolha. Essa ilusão é criada por alguém perfeitamente ciente do poder que ela tem. Faz com que as pessoas construam edifícios ou se atirem do alto deles. É uma ótima ferramenta para alcançar os objetivos quando utilizada sábia e sagazmente. Tudo o que isto requer é o alinhamento correto das peças, mas depois de certo tempo de uso, (ou seria do tempo certo?) essas peças se desgastam, e então são descartadas. A maioria se torna inútil, embora haja sempre uma ou outra que faça exceção à regra. Adivinha quem são as peças?


Depois que me tornei free lancer, me ative a manter o cuidado de pesquisar por conta própria. Se você procura por sujeira no passado de qualquer um, vai encontrar, sem dúvida. No meu ramo, desconfiança era o que conseguia nos manter vivos. Embora frequentemente ainda me deparasse  com fantasmas indigentes ou pistas indulgentes enquanto ia tentando rastrear.


Da primeira vez que aconteceu o sujeito não tinha predicado, apenas alguns traços. De início me pareceu um trabalhador honesto, voltando pra casa cansado, talvez buscando algum conforto no seio da família, e que isso o convencesse de que sua vida não era, de todo, miserável. Não sei como homens assim conseguiam viver naquele lugar. Não sei como os homens daquele lugar conseguiam viver assim. Ainda mais estando cercados por outros homens que não mereciam viver em lugar nenhum.


Mas infelizmente eu errei. A impressão, não o alvo. Estávamos em uma operação que consistia na busca e apreensão de um cidadão por nome de 'Francisco de Assis dos Anjos'. Conforme o mandado dizia, o sistema mandava e o oficial obedecia. Francisco de Assis dos anjos, vulgo anticristo, era suspeito de assalto a mão armada, homicídio, tráfico de entorpecentes, porte ilegal de arma, sequestro, extorsão e formação de quadrilha. Era também conhecido como o maior traficante de Sapopemba na época, ironias da vida. Nenhum dos meus companheiros queria levá-lo a justiça; Pelo menos não a julgamento. Pelo menos não ainda vivo.


O sujeito sem predicado infelizmente era um dos meliantes que estavam em confronto conosco. Sem identidade e sem antecedentes. Seu disfarce de trabalhador foi um dos melhores que já vi. Provavelmente seria o último que eu veria caso não reagisse a tempo. Exatamente como o velho ditado da cara e do coração dizia. Depois de sua tentativa de sacar um revólver calibre 22, e em resposta a isso eu ter enfiado uma bala na cabeça dele, me deu mesmo vontade de abrí-lo pra ver como era o seu coração. Mas naquele momento, era apenas o instinto aguçado pelo treinamento respondendo por mim.


Depois do recolhimento de provas, interrogatórios e relatórios, chegava ao final o meu plantão. Faziam apenas dois meses que havia saído do curso de formação e deixava a academia, e apenas um mês que estávamos morando juntos, Mirela e eu. Nas minhas contas, além da água, luz e telefone, haviam pelo menos uns sete anos desde que nos apaixonamos. Assim que entrei em casa, ela notou que minha feição havia mudado. Eu havia mudado. E nunca mais voltaria a ser como antes, ainda que quisesse. E eu queria.


Os dias que se seguiram vieram acompanhados de insônias, e o pouco que eu ainda conseguia dormir era graças aos analgésicos e antidepressivos. Às vezes ambos. Estes, misturados com a bebida, traziam em sua composição pesadelos onde eu via a fisionomia do rapaz. "Estou esperando por você." Ele dizia. Os lábios se mexiam e nenhuma voz saía, mas no fundo eu sabia. Então eu acordava no meio da noite e saía pra comprar mais bebida, na esperança de aliviar e de repente cruzar com espíritos por aí. A cocaína veio depois, já que os outros se mostraram pouco eficazes no combate. Precisava me manter acordado, já que o inimigo estava dentro, e dormir era um perigo. Até hoje ainda mantenho um desses hábitos em especial, assim como também o meu amigo espectro ainda mantém o seu de aparecer em dias alternados, mesmo depois de sete anos que se passaram desde o ocorrido. Mas agora ele não diz mais nada, só me olha e vai embora. Outros também aparecem, outros assim como ele. Nunca os conheci, nunca havia ouvido falar deles, nunca soube quem realmente eram. Nunca troquei mais de dez palavras com nenhum deles ainda em vida. Mas todas as noites eles vêm me fazer companhia.


É...Complicado. Pelo resto dos meus dias eu estou condenado. Talvez continue assim depois que eu morrer, vai saber. Em questão de poucos segundos, uma bala, que percorreu um caminho relativamente curto, do cano da minha pistola até parar cravejada na parede manchada de sangue, onde passou pelo crânio do elemento que caía inerte e se transformava em cadáver, meu aspecto, minha visão da corporação, meu modo de lidar com a vida e também de encarar a morte mudaram drasticamente. Talvez por isso minha fisionomia era outra. Dali em diante, nunca mais fui o mesmo.


Eu havia acabado de matar um homem. E parte de mim também morreu no processo.