sexta-feira, 4 de março de 2016

Game Overdose [005]


Pois bem, voltemos para a cena do acidente. Ou do crime, mera questão de ponto de vista. Mas não sem antes passar pela loja de conveniências, preciso explicar algumas coisas.

Como já havia dito, ou melhor, não dito, alguém estava me perseguindo. Era o tipo de coisa que eu nunca contava pra Mirela, embora ela sempre arranjasse um jeito de descobrir. Isso também graças àquele maldito envelope contendo fotos, algumas notas de cem e especificações sobre o endereço e horários do meu mais recente alvo, enfiados numa mochila escondida no guarda-roupas, onde eu coincidentemente também guardava minha pistola. "Bem feito pra você, otário." Foi merecido, eu sei. Descuido de iniciante, inadmissível até. Ela rasgou tudo na minha frente, jogou a mochila pela janela, me chamou carinhosamente de filho-da-puta-mentiroso e disse que não queria me ver nunca mais. Durou uma semana, tempo recorde. O dinheiro ela torrou tudo. Em compras no shopping e supermercado.

Só que dessa vez eu achei mesmo que fosse pra valer. Essa coisa de dêerre nunca funcionou com a gente. Nossas brigas tão frequentes sempre acabavam com ela batendo a porta. Às vezes na minha cara, por outras se mandava, e a porta lá, escancarada. Eu vivia consertando a maldita fechadura, talvez por isso minha facilidade em invadir aquele cubículo que chamávamos de apartamento. Minto, as brigas só acabavam assim que a raiva dela e meu orgulho decidiam sair juntos pra pegar um cinema. Nós tínhamos um modo bem íntimo e eficiente de fazer com que todo o rancor se dissipasse. Morávamos no sétimo andar.

Ela tinha essa mania ridícula de querer terminar por qualquer coisa. Tá, não era qualquer coisa, comigo nunca era. A medida acabou perdendo seu caráter extremo assim que deixei de levar a sério nossos términos quinzenais logo depois que reatamos pela terceira vez. Enquanto isso não ocorria, fingíamos levar a vida numa boa. Era até engraçado: Ela tentava me deixar preocupado quando se mandava pra casa da mãe na cidade vizinha ou dormia na casa de uma amiga da faculdade que não ia muito com minha cara. A escrota da amiga não tinha garagem, então era só passar na frente do prédio e ver o carro ali parado ou ligar pra casa da D. Ana em Santos, já que ela desligava o celular. "Te achei, sua maluca. Volta logo pra casa, precisamos conversar e ando sentindo sua falta." Ela sempre atendia no primeiro toque.

Consegui, por algum tempo, fazê-la crer que, após minha saída da corporação, estava trabalhando como detetive particular. Um amigo, o Figueredo, tinha um escritório montado na Vila Prudente, dei o número de lá. A mentira durou por alguns meses, tempo recorde. Até que, num belo dia, a secretária substituta fez o favor de dizer que não conhecia nenhum Henrique. Resultado: Ela foi direto pra mochila. E o resto você já sabe.

● ◆ ●

Como deve ter percebido, minha história não segue uma linha exata. Não tem cronograma, enredo ou roteiro específico e bem definido. É uma bagunça, como toda a minha vida sempre foi. Então, por mais que eu quisesse, não conseguiria dizer quando e onde tudo começou, porque realmente não sei. Também nem quero mais saber agora, já sou aquilo que sou. Ou melhor, aquilo que escolhi ser. Portanto, atente-se bem aos detalhes, ou simplesmente pare de ler. Já estive no limbo, e não recomendo. Na verdade nem sei como voltei. Se é que voltei pra valer.

O contratante havia esquecido de mencionar que o alvo era um peixe grande. Além de outros detalhes que classificariam claramente o serviço como sendo uma fraude, só que isso apenas mais tarde. Sempre fui meticuloso e extremamente profissional. Contudo, alguns detalhes imprescindíveis me passaram despercebidos, não consigo me conformar. A Mirela e o contratante tinham algo em comum: Ambos conseguiram explorar meu raro deficit de atenção em ocasiões distintas. A diferença é que a primeira me pegou no flagra, ao passo que o segundo me armou uma bela emboscada.

A sorte? Meu carro era bem rápido e a arma falhou. O estojo deflagrou e o cartucho do projétil não ejetou. 

O azar? Minha posição foi confirmada, meu disfarce comprometido e minha identidade revelada.

Mas isso explica apenas a fuga, não o acidente ou crime em si. Eu sei, pelo menos  você está atento. Mantenha a calma, mantenha a alma. Estamos quase lá.

Chegamos. Tempo recorde.




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