terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Game Overdose [002]


— O— Longa pausa  Não sei por onde começar.  Outra pausa. Acabo de invadir uma casa que já foi minha. Ela está na minha frente, sentada no sofá, com as mãos no rosto, ainda tentando disfarçar. Nem a maquiagem borrada conseguiu esconder a expressão de alívio, que logo foi substituída pela de desgosto. Tentei me aproximar, da forma mais sutil que pude. Sutilezas não eram o meu forte, mas disso ela já sabia. Acho que até acabou pegando minha mania. Foi direto ao ponto:

 O que houve com sua perna?

 Nada demais, tá tudo bem. Primeiro eu só queria que você me ouvisse. Depois pode perguntar o que quiser. Tudo bem?

 Não, não tá nada bem.  Longa pausa  A polícia veio aqui hoje. Em que você se meteu agora?

 Por favor, só presta atenção e me escuta. Não tenho muito tempo.

 Onde diabos você se meteu, Henrique? Te liguei uma centena de vezes, fui atrás de você em quase todos os lugares, e quando já ia comunicar às autoridades, adivinha: Eles aparecem na minha porta dizendo que o senhor estava sendo procurado e não quiseram entrar em detalhes. Quase que dei suas roupas pro Radar farejar e saí por aí distribuindo uns cartazes.  Longa pausa  Eu não aguento mais.  Ela balança a cabeça negativamente olhando pro chão. Eu olho também.

Essa última frase me fez esquecer de todo o discurso pronto que vim ensaiando no caminho. Queria explicar o meu sumiço, contar como bati o carro, quem estava me perseguindo, que ela também corria perigo e que qualquer detalhe sobre em que eu havia me metido só aumentaria esse risco. Que se acontecesse algo com ela eu jamais me perdoaria. De repente, contar como estava sendo complicado me concentrar no trabalho pensando na melhor maneira de desfazer toda aquela merda e também em tentar recuperar tudo aquilo que...Tínhamos. Esses últimos dias afastado tornaram todas as decisões mais difíceis ainda. Só então acreditei naquilo que me diziam sobre qual seria o maior problema de se atuar nesse ramo: Vida sentimental sacrificada em prol da estabilidade emocional. E já não estava funcionando tão bem como antes.

 O que você tinha pra me dizer?

 Nada. Deixa pra lá.

 Nada? Não dá pra acreditar.

 Me perdoe. - Longa pausa. - Preciso de umas roupas.

 Joguei todas as suas fora.

 E o Radar iria farejar o quê?

 No armário do noss...Meu quarto.

Enquanto estou me trocando, a campainha toca. Lá do outro lado da porta, alguém chama: "Senhorita Crummenauer!" Ela sussurra: "É a polícia!" Visto a camisa, pego o avental, paro bem na frente dela e dou um beijo. Em parte por força do hábito. A outra parte por não resistir àquele jeito acidentalmente sensual de sussurrar. Ela fica paralisada.

 Eu volto

 Eu sei.

Esse era o problema. Hoje consigo entender melhor o que ela sentia. Eu ficava aparecendo e depois sumia, sem mais nem menos. E no fim a única certeza deixada era a de que uma hora ou outra, e de uma hora pra outra, eu voltaria. Isso era muito pouco pra ela. Isso é muito pouco pra qualquer pessoa. Havia deixado de ser mágica, estava mais pra assombração. Se fosse o contrário, já a teria mandado pra puta-que-o-pariu da forma mais pol(fod)ida possível. Mas isso ela já havia me dito, inclusive mais de uma vez. Eu sabia que seria melhor pra todo mundo se me mantivesse longe. E até conseguia, por algum tempo. Daí não resistia. Depois as coisas só pioravam, como se fossem os juros das juras não proferidas sendo descontados do nosso ordenado. Mas no fim isso tudo importava? Uma vez ela me disse que só se sentia segura quando eu estava por perto. O que ela não sabia, é que eu sempre encontrava um jeito de me manter assim.

Pulo a janela de novo, com a sensação de que deveria ter dito outra coisa, de novo. Quantas coisas importantes a serem ditas e ouvidas cada nada não escondia?

O apartamento do andar debaixo estava desocupado. O sujeito que havia morado lá vivia reclamando do barulho que fazíamos. Era um velho que morava sozinho, cuja ocupação atual era a de procurar saber dos horários, hábitos e tudo o que se relacionasse a vida dos vizinhos e funcionários do condomínio. Essa era uma das razões que eu utilizava pra justificar e me convencer a apelar pro álcool, tabaco, cocaína e comprimidos. Não gostaria de viver tempo o suficiente pra me tornar ranzinza, nem queria dar trabalho pros filhos, se é que um dia eu os teria. Imagine só, o inferno que seria depender dos outros até pra ir ao banheiro. Ou pior, trabalhar a vida inteira pra criar uns moleques cretinos que, depois de crescidos, provocariam em mim um ataque fulminante ou me enfiariam num asilo.

Tento evitar as câmeras do corredor enquanto sigo em direção às escadas. - Longa pausa- Esqueci a porra do avental em casa.



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