terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Game Overdose [001]


Tudo o que me lembrava era de ter acordado no que parecia ser um hospital. Teto branco, lençóis brancos, tudo branco, exceto a luz, e sem fim de túnel. Estava frio, eu de avental, com a mão perfurada e recebendo fisiológico. Cheiro de éter por todo o ambiente. Algemas. Algemas? Só pode estar brincando. Meus órgãos pareciam todos no lugar. Sentei na beirada da cama, tentei tocar o chão. Perna enfaixada. Uma parafernália eletrônica me cercava. Haviam me sedado com uma bela anestesia. Nada mau, eu diria. Tudo começou a girar, tornei a me deitar.

Quem me trouxe? E por que pra cá? Queria perguntar em voz alta, mas o receio de ouvir minha própria voz era pior do que ficar sem resposta. Comecei a me perguntar se alguém iria se importar. Não importa. Mas meio que de repente, me veio um nome à mente que me fez pronunciar.  Mirela.  Falei em voz alta, tarde demais. Tomara que ninguém tenha ouvido. Ouço passos no corredor.

Tirar as algemas é mais simples do que parece. Tudo o que a gente precisa é de um pedaço de metal e de outro quê de sorte. Usei a agulha que me perfurava. Na falta daqueles milagrosos clipes de papel colocados em pranchetas cuidadosamente penduradas na cama, porque essas coisas só ficavam dando bobeira em filmes mesmo. Porra, terceiro andar.

A enfermeira não era gostosa. Me flagrou sentado no parapeito da janela e saiu gritando feito louca para pedir ajuda, mesmo depois de me ouvir dizer que se tratava de uma fuga, e não suicídio. Se bem que no fim ambos signifiquem a mesma coisa.

Pisei no aparelho de ar condicionado do segundo andar que, cedendo ao peso, parecia querer acertar o porshe estacionado na vaga para deficientes. Foda-se, pensei. Meti o pé. Os alarmes dispararam, do carro e do hospital. O sangue já havia esquentado, primeiro andar.

Depois do último batente, me agarrei à calha e pulei. Térreo. Saí mancando pelo beco. Precisava de roupas e um desjejum decente. Meu apartamento ficava a algumas quadras dali, contei e deram sete. Estava sem minhas chaves, e ela havia trocado a fechadura. Consegui abrir depois de algumas tentativas. Me lembrei de tudo o que aconteceu.


● ◆ ●


Foi como se eu tivesse previsto o impacto segundos antes de ocorrer. E houvesse desmaiado bem na hora em que fosse bater. Frações de milésimos, distância de milímetros.

A partir dali, tudo o que sabia era que não conseguia me mexer.



Demorei um pouco pra saber, e então conseguir dizer alguma coisa. 


Pronunciei um "Ok", que mais me pareceu um pedido de socorro. E ainda continuo sem entender.


Se eu sofresse novamente o acidente, não estaria muito diferente do que estou agora. Não saberia o que fazer. Não saberia se alguém poderia ou se viria me socorrer. Não saberia onde estaria. Poderia estar acordando de um sonho. Poderia já estar morto, vagando. Poderia estar de cima olhando pro meu próprio corpo, ou demônios poderiam estar me arrastando. Poderia estar preso nas ferragens ou ter sido lançado pelo vidro da frente. Poderia ter sido diferente.

Mas estou a salvo, aparentemente. Não estou são, infelizmente. Parado, atordoado, e segurando a maçaneta da minha porta da frente.

Se eu sofresse novamente o acidente, não estaria muito diferente do que estou agora. Mas ainda estaria sofrendo também.

Tanto a notícia quanto o fim são difíceis de aceitar. Ela começa a chorar.

Não sei por onde começar.

10 comentários:

  1. Fantástico. E que venham outros. O novel está no ar!

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  2. Tanto a notícia quanto o fim são difíceis de aceitar. Ela começa a chorar.

    Não sei por onde começar.

    - Muito bom Canalha.

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  3. Muito bom, deu vontade de ler mais.

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  5. 👏👏👏
    Você e digno não te uma mais de milhares de salvas de palmas.

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  6. Esse texto me pareceu ter outro sentido.

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  7. Muito foda! Se fosse um livro já estaria em minhas mão. E na boa?Que tu lanças um livro em breve.

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  8. Incrivelmente singelo, objetivo e fantástico!
    Admirável dia novo, é o que digo quando as coisas estão prestes a acontecer. Sem extorsos lamentáveis, outro dia progrede e recomeçamos repetidamente cada fase.
    Eu preciso de um psicólogo.

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  9. Mantém todo o êxtase que sinto quando leio seus textos. Começando agora Game Overdose e já estou de boca aberta admirando seu trabalha!
    Claps,Sir!!

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