terça-feira, 22 de março de 2016

Game Overdose [006]

Da primeira vez que aconteceu foi...Complicado. Uma ótima palavra a ser empregada quando não conseguimos expressar a gravidade da situação ou não fazemos a mínima noção dela. Talvez até consigamos, mas preferimos não falar sobre. Qualquer coisa que dissermos pode reavivar a dor e alimentar o imaginário do inquiridor. Eles nunca entenderiam, porque não estavam lá, não passaram por metade do que passamos e nem fizeram metade que tivemos que fazer. Foi tudo muito rápido, é o que costumamos dizer. Para nossa família, nossos amigos, a quem possa interessar e autoridades competentes. Não deixa de ser verdade, mas também serve pra que evitem pedir detalhes.

Depois do ocorrido, nunca mais fui o mesmo.


Havia muita gente no local, muitas vítimas em potencial. Essa era, dentre todas, minha maior preocupação. Não conseguiria visualizar qualquer inocente como sendo apenas uma perda aceitável, se é que me entende. Embora mensurar quem seja de fato inocente e diferenciá-los dos culpados seja uma tarefa tão árdua quanto era o meu trabalho.


Nem sempre tive o cuidado de estudar bem a proposta antes e buscar saber dos motivos por trás de tudo. Até porque era praticamente impossível de se ir a fundo nos registros e ultrapassar uma ordem direta do alto comando da polícia militar. E, vai por mim: O contratante sempre escondia algo, mesmo sendo ele pessoa física ou instituição. De início, meus critérios avaliativos para aceitação do serviço consistiam apenas na grana. Dependendo do que eu encontrasse, isso tornaria o contratante mais culpado que o próprio alvo.


Da primeira vez que aconteceu eu apenas cumpria meu dever obedecendo ordens. E o sistema, por sua vez, as comprava de mim. No fim das contas, entre comprar, cumprir e dever, o resultado que obtive foi o de que, o direito de escolha é uma ilusão. Isso mesmo, talvez você nunca teve ou fez alguma real escolha. Essa ilusão é criada por alguém perfeitamente ciente do poder que ela tem. Faz com que as pessoas construam edifícios ou se atirem do alto deles. É uma ótima ferramenta para alcançar os objetivos quando utilizada sábia e sagazmente. Tudo o que isto requer é o alinhamento correto das peças, mas depois de certo tempo de uso, (ou seria do tempo certo?) essas peças se desgastam, e então são descartadas. A maioria se torna inútil, embora haja sempre uma ou outra que faça exceção à regra. Adivinha quem são as peças?


Depois que me tornei free lancer, me ative a manter o cuidado de pesquisar por conta própria. Se você procura por sujeira no passado de qualquer um, vai encontrar, sem dúvida. No meu ramo, desconfiança era o que conseguia nos manter vivos. Embora frequentemente ainda me deparasse  com fantasmas indigentes ou pistas indulgentes enquanto ia tentando rastrear.


Da primeira vez que aconteceu o sujeito não tinha predicado, apenas alguns traços. De início me pareceu um trabalhador honesto, voltando pra casa cansado, talvez buscando algum conforto no seio da família, e que isso o convencesse de que sua vida não era, de todo, miserável. Não sei como homens assim conseguiam viver naquele lugar. Não sei como os homens daquele lugar conseguiam viver assim. Ainda mais estando cercados por outros homens que não mereciam viver em lugar nenhum.


Mas infelizmente eu errei. A impressão, não o alvo. Estávamos em uma operação que consistia na busca e apreensão de um cidadão por nome de 'Francisco de Assis dos Anjos'. Conforme o mandado dizia, o sistema mandava e o oficial obedecia. Francisco de Assis dos anjos, vulgo anticristo, era suspeito de assalto a mão armada, homicídio, tráfico de entorpecentes, porte ilegal de arma, sequestro, extorsão e formação de quadrilha. Era também conhecido como o maior traficante de Sapopemba na época, ironias da vida. Nenhum dos meus companheiros queria levá-lo a justiça; Pelo menos não a julgamento. Pelo menos não ainda vivo.


O sujeito sem predicado infelizmente era um dos meliantes que estavam em confronto conosco. Sem identidade e sem antecedentes. Seu disfarce de trabalhador foi um dos melhores que já vi. Provavelmente seria o último que eu veria caso não reagisse a tempo. Exatamente como o velho ditado da cara e do coração dizia. Depois de sua tentativa de sacar um revólver calibre 22, e em resposta a isso eu ter enfiado uma bala na cabeça dele, me deu mesmo vontade de abrí-lo pra ver como era o seu coração. Mas naquele momento, era apenas o instinto aguçado pelo treinamento respondendo por mim.


Depois do recolhimento de provas, interrogatórios e relatórios, chegava ao final o meu plantão. Faziam apenas dois meses que havia saído do curso de formação e deixava a academia, e apenas um mês que estávamos morando juntos, Mirela e eu. Nas minhas contas, além da água, luz e telefone, haviam pelo menos uns sete anos desde que nos apaixonamos. Assim que entrei em casa, ela notou que minha feição havia mudado. Eu havia mudado. E nunca mais voltaria a ser como antes, ainda que quisesse. E eu queria.


Os dias que se seguiram vieram acompanhados de insônias, e o pouco que eu ainda conseguia dormir era graças aos analgésicos e antidepressivos. Às vezes ambos. Estes, misturados com a bebida, traziam em sua composição pesadelos onde eu via a fisionomia do rapaz. "Estou esperando por você." Ele dizia. Os lábios se mexiam e nenhuma voz saía, mas no fundo eu sabia. Então eu acordava no meio da noite e saía pra comprar mais bebida, na esperança de aliviar e de repente cruzar com espíritos por aí. A cocaína veio depois, já que os outros se mostraram pouco eficazes no combate. Precisava me manter acordado, já que o inimigo estava dentro, e dormir era um perigo. Até hoje ainda mantenho um desses hábitos em especial, assim como também o meu amigo espectro ainda mantém o seu de aparecer em dias alternados, mesmo depois de sete anos que se passaram desde o ocorrido. Mas agora ele não diz mais nada, só me olha e vai embora. Outros também aparecem, outros assim como ele. Nunca os conheci, nunca havia ouvido falar deles, nunca soube quem realmente eram. Nunca troquei mais de dez palavras com nenhum deles ainda em vida. Mas todas as noites eles vêm me fazer companhia.


É...Complicado. Pelo resto dos meus dias eu estou condenado. Talvez continue assim depois que eu morrer, vai saber. Em questão de poucos segundos, uma bala, que percorreu um caminho relativamente curto, do cano da minha pistola até parar cravejada na parede manchada de sangue, onde passou pelo crânio do elemento que caía inerte e se transformava em cadáver, meu aspecto, minha visão da corporação, meu modo de lidar com a vida e também de encarar a morte mudaram drasticamente. Talvez por isso minha fisionomia era outra. Dali em diante, nunca mais fui o mesmo.


Eu havia acabado de matar um homem. E parte de mim também morreu no processo.





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